quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Palavra não dita


O poema é a palavra que não dizemos cara a cara.
Por medo, por vergonha, quando já é tarde.
Escrevi, escreveste poemas, tarde, perdidos no tempo.
Que o tempo agora é o nosso, digo-te vezes sem conta,
Vou escrever-te agora um, não porque te perdi,
Ou porque tenha medo de te perder, mas porque te amo,
Não para esperares por mim, mas para continuares comigo,
Não por me quereres, mas porque te quero, e desejo.
È pecado? Então pequemos em cada momento do dia
E comunguemos desta paixão, minha e tua, deste amor
Que nos arrebata e faz sofrer, complicados que somos,
Porque não pura e simplesmente entregarmo-nos nos braços,
No colo, no peito e deixar que os nossos lábios falem entre si,
Sequiosos, ardentes, respiração ofegante, para logo depois
Acalmarmos novamente e adormecermos num sono doce e
Profundo, tão profundo e tão doce e quando acordamos
No meio da noite, de entre os lençóis vem o cheiro do nosso amor
Ecoam nas paredes os nossos gemidos, gritos de prazer
Ainda lá dançam as nossas sombras, ritmo de ondas de prazer
Do mar azul, duma lua cheia erguendo-se no horizonte
Sobre um mar de prata, pranto na partida quando um milhafre
Levanta voo, olhos brilhando no meio da gare, ponto terminal
De mais uma separação que dói, milhas e milhas, sozinho na cama
Sinto a tua falta, o beijo doce pela manhã, o beijo à saída para o trabalho.
O poema foi a palavra que não dissemos e perdemos o tempo de viver
Por isso não te escrevo poemas, a prosa nem é corrida, voa sobre as linhas
Do papel, paralelas, comboio, passa a paisagem, paramos no tempo
É a vida a passar por nós, eu não quero ser mero espectador, quero
Acompanhá-la a passos largos, tão largos que o tempo parava e era eu que
Voltava no tempo, para quê se seria mero espectador, como um ser invisível,
Então olho à minha volta, bato asas, subo bem alto, como o milhafre planando
Sobre os campos, procuro-te com os meus olhos bem abertos e aterro no teu peito,
No teu ventre a semente do nosso amor vai um dia voar sobre os campos com
As asas que lhe dermos, mas independente, com o seu próprio ritmo,
Vai viver, descobrir o que é amar e talvez, quem saiba, escrever poemas como eu e tu.
Vai aprender, à sua custa, que cada momento é um bem precioso que não volta.
Soltar gargalhadas como a mãe, ser travesso como o pai, vai ser ele próprio,
Um pouco de nós, caminhará sobre a terra, primeiro a passos tímidos, depois correrá,
Palmilhará cada canto, cheirará o verde do eucalipto, a maresia nas rochas, o perfume
Duma rosa de Sintra, o que de bom esta terra tem para nos dar.
O poema não tem rima, nem prosa, o poema tem as palavras
Que escrevemos no corpo um do outro, num toque suave da pena dos nossos dedos,
Dos meus lábios nos teus, dos pés à cabeça.
O poema não tem principio nem fim, perde-se na memória dos nossos desejos,
Nos sonhos de olhos abertos, numa canção, outro poema, numa tarde de inverno.
O poema tem o calor da lareira, o som do estalar da madeira ardendo,
O poema tem o som da voz do recém-nascido, das teclas do piano arrebatado em crescendo, palco d’orquestra dum homem só, de negro vestido, o poema está nas águas do riacho, no restolho das árvores da Lagoa Azul, nos teus lábios.

29 Outubro 2004, sem fim

3 comentários:

Anónimo disse...

"pecar" sentindo... viver é sentir assim a poesia do que se não escreve... mas se entende
gosto!
isabel

Anónimo disse...

mais uma vez muito bonito.Cheio de aromas e sons e sentimentos.Está muito bem escrito.
Continua titio,escreves tão bem.

Anónimo disse...

vela um sentimento muito perfundo pela pessoa que ama e está lindissimo