quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Devia morrer-se de outra maneira


Devia morrer-se de outra maneira. Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir a despedida. Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!" E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen... como aquela nuvem além (vêem?)
— nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira

1 comentário:

XR disse...

Não me importava de partir assim, com data marcada por mim para a altura em que sentisse que "era tempo". Com tempo para as despedidas todas que quisesse fazer. Com tempo para dizer aos amigos o quanto lhes quero bem e à família o quanto os amo.