domingo, 31 de agosto de 2008

Estou aqui


Caminho na terra
Com pés assentes na Lua
Olhos errantes na escuridão da noite
Esperando o teu chamamento
Pérolas de água me cobrem os lábios,
Salgadas, são minhas lágrimas
Perdidas por não te encontrar.

No emaranhado do passado
Me enleio e desespero.

Parece-me que te reconheço.
A tua voz, os teus gestos,
As tuas frases.

Procuramos longe
O que afinal
Está tão perto.

Nos teus olhos me perco,
Nos teus lábios me encontro,
Nos teus braços me recolho.

Esqueço a outra que fui
Sou eu, embora a mesma.

Não, eu não parti
Estou aqui.
Espero-te.


Maria Madalena, 29 de Agosto de 2008

No televisor do meu filho

No televisor do meu filho,
O mundo gira, gira,
Ora azul, ora branco,
Ora um arco-íris,
Fixa-o no seu olhar inocente,
Nele não há massacres,
Nem bombas,
Nem tumultos,
Até bate palmas
Com aquelas mãos tão pequeninas
E abre a boca num sorriso.
Os olhos cinzentos brilham,
O corpo balança,
As mãos para a frente,
O primeiro passo,
Depois o rabo almofadado
De fralda recheado,
A caminho do chão.
No televisor do meu filho
Lava-se a roupa suja
E ninguém sai ofendido,
O pivot está sempre de folga
As notícias nem interessam
Podem ser as de ontem.
Eu também queria aquele televisor
Aquela máquina de lavar
Para limpar este mundo de tanta maldade.

João Fernando
Para a Madalena que me deu um filho tão lindo.
Para o meu filho, João, que ele cresça e se faça um homem.
Massamá, 11 de Novembro, dia de São Martinho

Corsário

Bombaleia o corpo, como marujo que é, desembarcado em terra, corsário de tenra idade, percorre o seu território em busca de esconderijos para os seus tesouros como qualquer pirata que se preze. Não tem horários a cumprir, que o pirata capitão é quem dita as regras, as horas. Dorme quando lhe apetece, come quanto e quando quer. Caminha sem destino e porque a terra é firme e os obstáculos são muitos, tropeça aqui e ali, fosse em mar alto e haveriam de ver, o seu corpo gingão, perna arqueada está feito para os balanços da sua caravela, nela dorme embalado pelas ondas do mar. Aqui e ali berra as ordens para os seus tripulantes, outras vezes um sorriso escancarado, uma gargalhada do fundo do peito. Os seus olhos cor do mar de Inverno, verdes acinzentados, os fartos caracóis, as mãos enormes, assim é o nosso corsário.
Qualquer cama ou sofá é um túnel escavado onde os seus tesouros se vão amontoando, qualquer móvel um esconderijo escavado onde os seus braços curtos não chegam e ordena à marinhagem que recolha os seus tesouros, qualquer cesto de molas, o seu baú donde antes tirava as suas moedas de ouro e depois de contadas as deixava espalhadas pelo chão, agora vai pondo e tirando como que para lhe parecerem mais os seus dobrões de ouro. Outras vezes o nosso corsário mais parece virado para os coches e carroças de tanto gostar de rodas, fá-las girar como as rodas dum moinho de água, ou um de velas cheias pelo vento.
O nosso corsário desconhece as doenças do novo mundo e quando elas lhe aparecem, não há médico, não há ninguém que fale a sua língua e desata aos berros para que se lhe acalmem as dores, coitado do nosso corsário, afinal não há valentia, nem forças que lhe valham nesses momentos.
Mas esses são apenas pequenos obstáculos, o nosso filho vai crescendo a olhos vistos, um peso pesado de bebé, tão frágil, a esticar os braços para que lhe demos colinho…
Vamos educá-lo para que se faça um homem, e vamos gravando na nossa memória os momentos que são únicos para um dia o vermos fazer o mesmo que nós.

João Fernando
Algures sobre o Atlântico, 10 de Fevereiro de 2006

Doce loucura

Conto as horas, que os minutos são tão longos,
vejo as nuvens a passar em marcha à ré
não há proa, apenas o mar azul imenso,
não há ponteiros apenas o troar abafado dos motores,
lá fora o tempo parou num incrível deboche de cores,
sol que se põe sem escuridão,
volto para donde nunca parti,
não há cansaço mesmo de noite mal dormidas,
não há distância afinal porque somos dois átomos
batendo em uníssono, mesmo separados,
venho de tão longe e afinal estou tão perto,
e num aperto, de braços que enlaçam o teu corpo de alto a baixo,
fundo-me em ti, afogo-me no teu mar, encosto-me ao teu cais,
beijo a tua boca sôfrega da minha, beijo sem fim,
e ali mesmo te faço minha mulher,
pouso no teu colo, adormeço no teu compasso…
e depois em ti acordo, em ti me encontro, já não voo mais,
sempre que parto fico aqui de onde nunca quero sair.

Doce loucura esta de te amar.

João Fernando
5-2-2008

Pastel de natas




Do que já vivi e viajei
Nem meio mundo corri
Neste vaivém atlântico
Entre o continente de Vespucci
E o velho continente
Das Ilhas supostas de Atlântida
Muita guloseima comi,
Grega em Boston
Donas Amélias na Terceira,
Ovos moles em Aveiro,
Dons Rodrigos no Algarve,
Travesseiros em Sintra,
Mas os pastéis,
Os de nata,
Só mesmo os nossos,
Sem publicidade,
Pela primeira vez provados
Em tarde cálida de Verão
Numa cama andarilha,
Corpos suados,
Energias recuperadas,
Um beijo de pastel…

João Fernando


20 de Abril 2008

Para o meu pequeno João

Há na tua pele, meu filho, a palidez da lua
Nos teus olhos, o cinzento do mar em dia de Inverno
Mas o teu sorriso é aurora boreal
É o sol que me aquece
As tuas mãos, tão pequenas, mas tenazes
E até o teu choro estridente, nem tristeza
Apenas a imensa alegria da felicidade da tua mãe
Sobre o seu peito a tua cabeça deitada
O teu corpo minúsculo.
Agora, aqui deitado a meu lado
Palras a tua algaraviada de petiz
Abanas os braços como um pássaro
Que aprende a voar,
As tuas pernas pedalam e pedalam
Como se quisesses correr o mundo.

João Fernando
17-6-2005

Porque te esqueço

Por vezes esqueço-me de ti
Ou de mim
Porque julgo estares em mim
Ou eu em ti
E eu respiro
Porque tu respiras
E eu amo
Porque tu amas
E eu choro
Porque tu choras
E eu rio
Porque tu te ris.

Lá longe, bem longe
Na longa noite escura
Eu espero-me
Esperando-te,
Querendo-me
Quero-te,
Mas estás longe
Sempre longe,
Tanto quanto eu
Estou longe de mim

Sob um céu estrelado
Soam ecos na noite
Murmúrios
Sussurros
São a tua voz
Na minha voz
São a minha voz
Na tua
São os teus gemidos
Nos meus gemidos,
São os meus gemidos
Nos teus

Se pudesse voar
Voaria até ti,
Voando até ti
Voaria até mim

Se eu te encontrasse
Encontrar-me-ia,
Mas perdi-me
Quando te perdi.

29 de Abril de 2008

A porta?

Pensam-me os anos
Não a idade
Que a essa, já lhe perdi o conto;
Pesam-me os dias
Sempre iguais
O Sol
Nasce
Almoça
E põe-se
Porque é que um dia destes
Resolve o Sol não nascer?
Dizia: - hoje não nasço e pronto!

Cansa-me
Este eterna
Previsibilidade do imprevisível futuro.
Porque não nascem rosas pretas?
Eu nunca vi uma rosa preta
E se há rosas amarelas
É porque cor-de-rosa e amarelo são ambas a mesma cor.

Que confusão
Os dias são
Eternamente e previsivelmente
Igualmente desiguais.

Pesa-me o ser, este fingir que vivo
Que na realidade é desviver.
- Então como vai a vidinha? Perguntam.
- Vai andando, respondo,
Para não dizer que vai desandando
Não quero ter que explicar porquê.
Porque motivo querem as pessoas saber sempre tudo
O que não interessa? Se é que alguma coisa interessa
Nesta vida.

Dói-me os pés neste descaminho que percorro
Onde me arrasto, neste eterno
Sonha-que-logo-alcanças
Sem nunca alcançar seja o que for.


Qual o sentido das coisas?
Ou as coisas não têm sentido?
Então se as coisas não têm sentido, porque temos que lhe inventar um?

Irritam-me os políticos
Os intelectuais
Que julgam saber de tudo
Quando não sabem de coisa nenhuma
A não ser alardear a sua imbecil não-inteligência.

Irrita-me
Este ódio,
Esta guerra,
Esta mentira,
Esta inveja
Esta ganância
Toda esta mesquinhez
Todas as injustiças
Não era suposto sermos todos humanos?
Não era suposto sermos todos racionais?

Irritam-me as luzes da noite
Que me impedem de ver o brilho das verdadeiras estrelas

Irrita-me o barulho dos carros
Que me impede
De ouvir o vento
De ouvir o mar

Irrito-me de mim própria
Eterna desconhecida
De um eu que não sou eu

Quero ir-me embora
Deixem ir-me embora

Digam-me só uma coisa
Por favor

Onde é a porta da saída?



Maria Madalena

sábado, 30 de agosto de 2008

Temporal

Ele entrou dentro de casa
e disse enquanto batia com a porta da rua.
-Está um temporal lá fora!

Levantei-me e fui até à janela do quarto.

Fustigada pelo vento
a chuva bailava numa frenética coreografia.
Olhei o céu.
grossas nuvens pintavam-no
em tons de cinza tão escuro, que ao meio-dia,
parecia quase noite.
Enquanto a chuva continuava
o seu bailado infernal,
olhei para o largo,
a água tinha invadido completamente o chão
correndo de tal forma pelas pedras da calçada
que mais parecia o caudal de um qualquer rio.

Quieta em frente à janela
com uma dor imensa
sentia toda aquela tormenta,
toda aquela tempestade.

Ele entrou no quarto.
- Que fazes aí, parada em frente ao espelho?
Perguntou.
Surpreendida virei-me.
Ao seu lado
a única janela do quarto
tinha as portadas completamente fechadas.

Olhei mais uma vez o espelho
e engolindo todo aquele caudal de lágrimas
recolhi-me toda para dentro…
…de mim.

Maria Madalena, 23 de Março de 2008

Nem o mais ínfimo pormenor

A minha velha amiga
veio de novo visitar-me,
sabes?
Aquela que de vez enquando
também te visita.

Aquela que nos deixa
maresia nos olhos
e tempestade no coração.

Eu não a convidei,
aliás,
eu nunca a convido,
mas ela vem sempre.
Já mudei tantas vezes
de fechadura
e ela consegue sempre entrar.

Eu não quero.

Não quero a maresia
que ela me dá,
não quero a chuva,
não quero a neve
que me gela a alma,
que me quebra o coração.

Eu não quero nada dela,
porém ela tudo me dá,
tudo,
sem esquecer o mais infímo pormenor.

Maria Madalena, 5 de Março de 2008

De mão em mão



De mão em mão
de gesto em gesto
de carícia em carícia
Fizeram-se
os segundos,
os minutos,
as horas,
os dias.
Sempre um pouco mais,
Um pouco mais de amor.

Encontraram-se os gestos,
fundiram-se os corpos
em espasmos de amor
e de paixão.

Naquele instante
tão longo,
e tão breve
nada mais existiu,
só a magia
de um doce amor.

Misturaram-se corpos,
Misturaram-se emoções,
amor,
paixão,
tristeza,
saudade.

Saudade de saber
que aquele momento
nunca mais se repetirá.

No fim, só o gosto amargo
do sal das lágrimas,
da dor da despedida.
No fim, só um Adeus,
breve,
suspirado.

Saudade
ó que palavra atroz.

Maria Madalena, 19 de Janeiro de 2008

domingo, 3 de agosto de 2008


Posso escrever os versos... (Poema XX)

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".

O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi já.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.

Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

Pablo Neruda